Filosofia Cirúrgica

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A cirurgia deve ser conceituada como ciência e arte que, através da melhor organização das sociedades e do progresso técnico, foi ampliando os seus horizontes, aproximando-se cada vez mais do indivíduo, entendendo suas enfermidades, suas emoções e sua função na sociedade, promovendo a saúde através do tratamento cirúrgico. Ao cirurgião, como protagonista dessa especialidade, cabe o papel não só do tratamento eficiente, mas do conhecimento das causas e criação de atitudes preventivas das enfermidades cirúrgicas e de seus respectivos ônus sociais, micro e macroeconômicos, e de aprofundar-se na visão bio-psico-social do paciente.

A Filosofia da Cirurgia é, também, fortemente robustecida na sua direção individual e na missão social pela sua aplicação no exercício cotidiano, principalmente, quando o profissional possui grande sensibilidade humana e largo campo de formação técnica e ética. É importante frisar que, enquanto no Direito existe o princípio de “tratar de maneira distinta os desiguais”, a Cirurgia, embora recomende procedimentos diferentes de acordo com a doença e o estado do doente, trata, porém, igualmente os socialmente desiguais. Na doença todo mundo é igual, paciente anestesiado e descoberto pertence ao mundo dos iguais.

A doutrina da Filosofia da Cirurgia tem finalidades elevadas, superando as de todas as profissões, porque coloca as necessidades do paciente acima dos interesses pessoais do cirurgião. A cirurgia supera todos os ramos da atividade humana em relação às suas exigências na formação e atuação do profissional e no conjunto de responsabilidades assumidas perante a vida dos pacientes. Esta transcendência confere à Cirurgia não só características de profissão, mas toda a estrutura, meios e fins de ciência, com que se constitui numa Filosofia.

É impactante pensar que, desde os tempos antigos até meados do século XIX, adoecer com enfermidade cirúrgica significava ingressar no espectro da morte. No decurso do século XX e, principalmente, no seu último quarto, o progresso da cirurgia foi vertiginoso. Todos esses fatores melhoraram a realização do ato cirúrgico, tornando-o mais preciso, seguro, factível e confortável para o cirurgião de resultados repetidos e por isso confiável e aceitável pelo paciente. A cirurgia em todas as especialidades tem contribuído para a melhora da qualidade de vida, bem como, com importante parcela, para o aumento da idade média do homem.

A doutrina e a Filosofia da Cirurgia é centrada no ser humano, o paciente. O humanismo em cirurgia inicia-se com o cirurgião conhecendo-se a si mesmo, a sua personalidade e a autenticidade da sua vocação, a sua formação e capacidade profissional, os limites da sua competência, o senso de profissionalismo, a vontade de manter-se atualizado e o desenvolvimento dos seus atributos de liderança. Por isso afirma-se que, no real espírito de humanismo do cirurgião, deve existir emoção recíproca, isto é, a sensibilização do próprio cirurgião perante o quadro de emoções referidas pelo paciente ao enfrentar a doença e o ato cirúrgico.

Este é o núcleo da doutrina, em torno do qual vão desenrolar-se, na relação médico-paciente, as atitudes de despojamento de vantagens pessoais, financeiras ou de outros interesses sobre o paciente que não o de procurar exclusivamente servi-lo. Reforça-se o propósito de praticar procedimentos iguais para todos os enfermos, independentemente do seu nível social e educacional, do pobre ao nobre, do analfabeto ao douto. Existe, nesta linha de atitudes, o aperfeiçoamento da visão social do cirurgião, esmerando-se na escolha e realização de procedimentos cirúrgicos, objetivando oferecer ao paciente boa qualidade de vida que lhe capacite o retorno ao seu meio social para sua atividade laborativa e convivência usual.

Todo exercício da cirurgia conduzido dentro do espírito de humanismo tem absoluta coerência com a moral dos deveres, a deontologia, e a moral dos direitos, a diceologia, sustentáculos da moral da prática médica, a ética. Deve reconhecer-se, igualmente, a sua relatividade, seu caráter mutável no tempo e no espaço, sua evolução que acompanha as transformações sociais. A Ética, como teoria da Moral, do mesmo modo, varia e se diversifica no tempo, baseando-se, porém, sempre no princípio “de empregar meios éticos para fins éticos”.

Para que o cirurgião realize seu trabalho na especialidade com eficiência e bons resultados, é fundamental que tenha formação solidamente adquirida, no mínimo de dois anos básicos de cirurgia geral e, pelo menos, de três na especialidade, num serviço reconhecido, bem estruturado, onde atuam cirurgiões experientes, capazes de lhe transmitirem conhecimentos atualizados e exemplos de conduta moral e ética. O desejável é que no final do programa este especialista tenha capacidade de atender pacientes em qualquer grau de complexidade clínica, podendo realizar diagnósticos e intervenções, nas situações eletivas e de emergência, obedecendo aos limites de sua competência. Rever as suas limitações, reconhecendo a própria ignorância já é começo do aprendizado. Sabendo-se da interferência do seu comportamento no exercício da profissão, incluindo o sério momento do ato operatório, o cirurgião deve acima de tudo zelar pela sua saúde mental e física, mantendo constante vigilância e controle de si mesmo. Procurar ter vida pessoal e familiar organizada, tentando controlar os conflitos para não trabalhar com a mente inundada, o que pode afetar o seu desempenho. Os principais fatores adversos ao bom desempenho do cirurgião são: desorganização financeira, problemas comportamentais (obesidade, alcoolismo e carga horária de trabalho excessiva), má administração do tempo e logística hospitalar inadequada para o procedimento cirúrgico indicado.

O cirurgião, quando da aproximação com o paciente, passa a assumir um compromisso de conseqüências jurídica, ética e social. Em todo o decurso do tratamento, entra em jogo, também, grande contingente de emoções do paciente, exercendo forte influência nos resultados, exigindo do cirurgião saber interpretá-las e lidar adequadamente com elas. O paciente, ao procurar o cirurgião, na incerteza da gravidade de sua doença, traz dentro de si um mundo de emoções e expectativas de vida abaladas. Transforma-se, então, em refém da doença. A relação médico-paciente lida na intimidade com as emoções do doente, que surgem, em grau variável, em cada indivíduo ao se iniciarem os sintomas e dependem da instalação aguda ou lenta da doença, proporcionais à grandeza do quadro clínico e às fantasias fóbicas de cada paciente. Na visão da cirurgia, é em última análise, após o tratamento operatório, que o indivíduo volte a usufruir das suas oportunidades habituais, exercendo totalmente a sua cidadania, estimulado para avançar em novas conquistas. O objetivo é fazer o indivíduo, através dos recursos da cirurgia, recuperar a  sua saúde física e mental e assumir padrões de boa qualidade de vida compatível com o seu meio. A cirurgia desfruta de grandes recursos, promovendo o benefício à saude, “dando anos à vida”, e o paciente, como protagonista em seu tratamento pós-operatório,  tem que se empenhar para “dar vida aos anos”.

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