Princípios Fundamentais da Oncologia Cirúrgica Digestiva

Uma Abordagem Contemporânea e Baseada em Evidências

O Cenário Atual do Câncer Digestivo no Brasil

A Cirurgia do Aparelho Digestivo vive um momento de transformação sem precedentes. Não somos mais apenas “técnicos de ressecção”, mas parte integrante de uma complexa engrenagem multidisciplinar. A relevância deste tema é sublinhada pelos dados epidemiológicos alarmantes. Se no passado nos baseávamos em estimativas modestas, hoje a realidade é desafiadora: segundo a Estimativa 2023-2025 do Instituto Nacional de Câncer (INCA), esperam-se 704 mil casos novos de câncer por ano no Brasil.

Destaque-se que as neoplasias do trato gastrointestinal ocupam posições cimeiras. O câncer colorretal figura como o segundo mais incidente em mulheres e homens na maioria das regiões, com cerca de 45 mil novos casos anuais, seguido de perto pelo câncer de estômago (21 mil casos) e esôfago. Estes números não são apenas estatísticas; representam uma demanda crescente por cirurgiões oncológicos altamente qualificados, capazes de compreender não apenas a anatomia, mas a biologia tumoral.

A Biologia como Norte da Técnica Cirúrgica

Fisiopatologia e Disseminação

O entendimento clássico da cirurgia oncológica, herdado dos princípios de William Halsted no final do século XIX, baseava-se na premissa de que o câncer era uma doença puramente local que se disseminava centrifugamente. Embora a radicalidade (ressecção em bloco) permaneça um pilar, hoje compreendemos a doença como sistêmica desde fases precoces em muitos casos.

A disseminação ocorre por três vias principais que o cirurgião deve dominar:

  1. Linfática: Predominante em carcinomas (ex: adenocarcinoma gástrico e cólon).
  2. Hematogênica: Preferencial em sarcomas e carcinomas avançados (fígado e pulmões como sítios-alvo).
  3. Transcelômica (Peritoneal): Comum em neoplasias gástricas T3/T4, ovário e apêndice, exigindo estratégias específicas como a peritoniectomia.

O Princípio da Radicalidade e Margens (R0)

O objetivo primário da cirurgia oncológica curativa é a ressecção R0 (ausência de doença residual macroscópica e microscópica). A cirurgia R1 (doença microscópica residual) ou R2 (macroscópica) impacta drasticamente o prognóstico.

  • Ressecção em Bloco: O tumor nunca deve ser violado. A peça deve ser removida envolta por tecido saudável, respeitando as fáscias anatômicas e os pedículos vasculares na sua origem.
  • Linfadenectomia: Não serve apenas para estadiamento, mas tem papel terapêutico. No câncer gástrico, por exemplo, a linfadenectomia D2 é o padrão-ouro em centros especializados, associada a menor recidiva locorregional.

Neoadjuvância vs. Adjuvância

A decisão entre operar primeiro (upfront surgery) ou indicar terapia neoadjuvante é um dos grandes debates atuais.

  • Vantagens da Neoadjuvância: Tratamento precoce de micrometástases, redução do tumor (downstaging) facilitando a ressecção R0 e teste in vivo da quimiossensibilidade. É o padrão atual para câncer de esôfago localmente avançado e câncer de reto médio/baixo.
  • Vantagens da Adjuvância: Baseada no estadiamento patológico preciso (pTNM), evitando tratamento excessivo em estádios precoces.

Aplicação Prática na Cirurgia Digestiva

A prática moderna exige que o cirurgião diferencie dois conceitos cruciais frequentemente confundidos: Ressecabilidade e Operabilidade.

  • Ressecabilidade: É uma característica do tumor (relação com estruturas vitais).
  • Operabilidade: É uma característica do paciente (reserva funcional, comorbidades, status performance). Um tumor pode ser ressecável, mas o paciente inoperável.

O Papel da Citorredução e HIPEC

Para a carcinomatose peritoneal, historicamente considerada uma condição terminal, houve uma mudança de paradigma. Em neoplasias selecionadas (como pseudomixoma peritoneal, mesotelioma e alguns casos de câncer colorretal), a combinação de Cirurgia de Citorredução (Peritoniectomia) com Quimioterapia Intraperitoneal Hipertérmica (HIPEC) tem oferecido sobrevida em longo prazo, transformando uma doença fatal em uma condição crônica tratável.

Planejamento Multidisciplinar

O cirurgião oncológico não atua isolado. A discussão em Tumor Boards é mandatória. A indicação cirúrgica deve considerar a biologia molecular (ex: status do gene APC em colorretal, superexpressão de HER2 em gástrico) e a resposta a terapias sistêmicas.

Pontos-Chave para a Prática Cirúrgica

  • Estadiamento Preciso: Nunca leve um paciente à sala sem um estadiamento completo. A laparoscopia diagnóstica é fundamental em tumores gástricos e pancreáticos para evitar laparotomias desnecessárias em casos de carcinomatose oculta.
  • Margens Cirúrgicas: A margem circunferencial (radial) no câncer de reto e a margem proximal no câncer gástrico e esofágico são preditores independentes de sobrevida.
  • Manuseio da Peça (“No-touch technique”): Evite a manipulação direta do tumor. A ligadura vascular prévia e a mobilização cuidadosa previnem a embolização tumoral intraoperatória.
  • Documentação: O relatório cirúrgico deve detalhar as cadeias linfáticas dissecadas e as estruturas preservadas ou ressecadas, orientando o patologista e o oncologista clínico.

Perspectivas Futuras

A cirurgia digestiva na sua área de atuação oncológica evoluiu de amputações extensas para procedimentos de precisão, muitas vezes minimamente invasivos (laparoscópicos ou robóticos), sem perder a radicalidade oncológica. O futuro aponta para uma integração ainda maior com a biologia molecular e a imunoterapia. O cirurgião do futuro deverá ser, antes de tudo, um oncologista que opera: alguém que entende que o bisturi é apenas uma das armas, e que saber quando não operar é tão vital quanto a técnica operatória refinada.

Como nos ensinou o pai da cirurgia oncológica moderna:

“O cirurgião deve ser o médico do paciente oncológico, e não apenas o técnico que remove o tumor.”William Stewart Halsted

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