A colecistectomia laparoscópica, procedimento que revolucionou a cirurgia biliar, trouxe consigo um dilema persistente: a lesão iatrogênica da via biliar. Este artigo examina a natureza dessa complicação, questionando se deve ser considerada um evento adverso inerente ou uma falha evitável.
Desde a introdução da colecistectomia laparoscópica há cerca de três décadas, a incidência de lesões do ducto biliar comum permanece estável, oscilando entre 0,4% e 0,7%. Este fato intrigante persiste apesar dos avanços tecnológicos, da padronização de técnicas e da crescente experiência dos cirurgiões.

A anatomia complexa da região hepatobiliar, combinada com as limitações inerentes à abordagem laparoscópica, cria um cenário propício para erros de percepção. O estudo seminal de Way e Hunter, analisando 252 casos de lesões biliares, revelou que 97% dessas lesões resultaram de ilusões de percepção visual, não de falhas técnicas ou de conhecimento.
Estratégias para mitigar o risco de lesão incluem a abordagem do infundíbulo, a “visão crítica de segurança”, a dissecção retrógrada e a colangiografia intraoperatória. No entanto, nenhuma dessas técnicas provou ser infalível. Surpreendentemente, mesmo a colangiografia, frequentemente considerada o padrão-ouro para identificação anatômica, falhou em prevenir ou detectar lesões em muitos casos.
A questão central permanece: devemos considerar a lesão da via biliar durante a colecistectomia laparoscópica como um risco inerente do procedimento ou como evidência de prática abaixo do padrão? A resposta não é simples e tem implicações significativas, tanto do ponto de vista médico quanto legal.
Argumenta-se que, se um cirurgião empregou todos os métodos reconhecidos para identificar a anatomia corretamente e ainda assim ocorreu uma lesão, isso não deve ser automaticamente rotulado como negligência. A cirurgia, afinal, é tanto uma arte quanto uma ciência, sujeita às limitações da percepção humana e às variabilidades anatômicas.
Por outro lado, a comunidade cirúrgica tem a responsabilidade de continuar buscando métodos para reduzir a incidência dessas lesões. Isso inclui treinamento avançado em anatomia biliar, simulações que reproduzam cenários desafiadores e educação contínua sobre os processos cognitivos envolvidos na tomada de decisão cirúrgica.
É crucial que os pacientes sejam plenamente informados sobre este risco específico. A conveniência e os benefícios da abordagem laparoscópica vêm com um pequeno, mas significativo, aumento no risco de lesão biliar em comparação com a cirurgia aberta tradicional.
Em conclusão, enquanto continuamos a debater se a lesão da via biliar durante a colecistectomia laparoscópica é um evento adverso inevitável ou uma complicação evitável, é imperativo que mantenhamos um equilíbrio entre a busca pela perfeição técnica e o reconhecimento das limitações humanas. Somente através de uma abordagem honesta e reflexiva poderemos avançar na segurança cirúrgica e na qualidade do cuidado ao paciente.

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“To study the phenomena of disease without books is to sail an uncharted sea, while to study books without patients is not to go to sea at all.” – William Osler
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