A Dualidade da Humanização Cirúrgica

Era da Inteligência Artificial e da Robótica: Desafios e Perspectivas

Por Prof. Dr. Ozimo Gama

Coordenador do Curso de Medicina da Universidade Federal do Maranhão

O Cenário Atual e a Necessidade do “Toque Humano”

A prática da cirurgia do aparelho digestivo vive um momento de paradoxo fascinante. Por um lado, testemunhamos avanços tecnológicos sem precedentes, com a cirurgia robótica e a inteligência artificial (IA) redefinindo os limites do possível. Por outro, enfrentamos uma crise silenciosa na relação médico-paciente. No Brasil, segundo dados do DATASUS e do Conselho Federal de Medicina, realizamos milhões de procedimentos cirúrgicos anuais pelo Sistema Único de Saúde (SUS), onde a alta demanda muitas vezes colide com a necessidade de um atendimento individualizado.

A “humanização” não é apenas um conceito abstrato ou uma “soft skill” desejável; é um imperativo clínico. Estudos epidemiológicos demonstram que pacientes que estabelecem uma relação de confiança sólida com seus cirurgiões apresentam melhor adesão ao tratamento pós-operatório, menores índices de litígios médicos e, subjetivamente, uma percepção de dor reduzida.

O desafio contemporâneo, como bem alertava o Prof. Alcino Lázaro da Silva, é evitar que o “fascínio das máquinas e dos botões” transforme o jovem cirurgião em um “sectário ou robô”. Precisamos integrar a tecnologia sem permitir que ela congele nossos sentimentos ou desqualifique a essência da nossa profissão: o cuidado com o ser humano.

Tecnologia, Ontoética e Controvérsias

A Inteligência Artificial e a Despersonalização

A IA chegou para auxiliar na tomada de decisão, predizendo complicações e otimizando fluxos em centros cirúrgicos. No entanto, existe o risco real da “atrofia da empatia”. Quando confiamos excessivamente em algoritmos para o prognóstico, corremos o risco de tratar o paciente como um conjunto de dados biométricos, e não como uma biografia. A tecnologia deve ser uma ferramenta de meio, nunca de fim. O cirurgião que se esconde atrás da tela do computador perde a oportunidade de exercer a “Ontoética” — a ética do ser, o respeito intrínseco à vida humana que transcende a técnica.

Aspectos Médico-Legais e o Consentimento

A humanização tem implicações jurídicas diretas. O Prof. Milton Glezer destaca que o paciente tem o direito de recusar tratamento (salvo risco iminente de morte) e de ter acesso irrestrito ao seu prontuário. No Brasil, a judicialização da medicina tem crescido exponencialmente. Uma parte significativa desses processos não decorre de erro técnico (imperícia), mas de falha na comunicação. O Consentimento Livre e Esclarecido não deve ser apenas um formulário burocrático assinado na admissão. Ele deve ser um processo contínuo de diálogo, onde o cirurgião traduz o “tecniquês” para a realidade do doente, respeitando sua autonomia e dignidade.

Controvérsias Filosóficas

A controvérsia reside na formação médica atual. Os currículos de graduação e residência muitas vezes privilegiam a técnica em detrimento da humanística. Criamos excelentes técnicos capazes de realizar gastrectomias complexas, mas que, por vezes, falham em comunicar um diagnóstico de câncer gástrico com a compaixão necessária. A escola médica deve ensinar que o doente prefere, acima do tecnocrata, o amigo; acima do executor de procedimentos, o médico que orienta e acolhe.

Aplicação Prática na Cirurgia do Aparelho Digestivo

Na nossa especialidade, a humanização possui facetas muito específicas e impactantes:

  1. Ostomias e Imagem Corporal: Ao indicar uma colostomia definitiva, por exemplo, o cirurgião digestivo não está apenas alterando a anatomia, mas a autoimagem e a vida social do paciente. A abordagem humanizada exige preparar este paciente psicologicamente, envolvendo a equipe multidisciplinar e a família antes mesmo do ato cirúrgico.
  2. Oncologia Cirúrgica: O diagnóstico de neoplasias do trato gastrointestinal carrega um estigma de mortalidade. A forma como a notícia é dada (protocolo SPIKES, por exemplo) é tão crucial quanto a linfadenectomia realizada.
  3. Cirurgia Bariátrica: O paciente obeso muitas vezes carrega anos de preconceito, inclusive dentro do sistema de saúde. A humanização aqui significa enxergar a obesidade como doença crônica, despindo-se de julgamentos morais e oferecendo um suporte que vai além da perda de peso.

Pontos-Chave para a Prática Diária

Para o residente e o jovem cirurgião, a humanização se traduz em atos concretos:

  • Olho no Olho: A tecnologia (computadores, tablets) não deve ser uma barreira física durante a consulta. Sente-se, olhe para o paciente e escute ativamente antes de examinar.
  • Identificação Clara: Como preconizado nas diretrizes hospitalares, apresente-se, diga sua função e certifique-se de que o paciente sabe quem é o responsável pelo seu tratamento (titularidade médica).
  • Gestão da Expectativa: Explique riscos e benefícios reais. A frustração do paciente muitas vezes nasce de uma expectativa irrealista não corrigida pelo cirurgião no pré-operatório.
  • O “Não” Terapêutico: Saber a hora de não operar (obstinação terapêutica) em casos de carcinomatose ou doenças terminais é, talvez, a maior prova de humanidade e ética cirúrgica.

Perspectivas Futuras

O futuro da Cirurgia do Aparelho Digestivo não será definido apenas pela precisão dos robôs ou pela acurácia dos algoritmos de IA, mas pela nossa capacidade de manter a essência humana em um ambiente cada vez mais digital. A “Ontoética” deve guiar nossas mãos tanto quanto a anatomia.

Precisamos formar cirurgiões “híbridos”: exímios operadores da tecnologia, mas profundos conhecedores da alma humana. Como discutido nos textos bases, o hospital deve buscar trazer esperança, e o médico deve lembrar que, ao tratar um doente, está lidando com uma unidade indivisível de medos, histórias e sentimentos. A tecnologia passa, a máquina obsoleta é trocada, mas o impacto de um atendimento humano perdura na memória do paciente e de seus familiares.

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“O único meio de combater a praga da impessoalidade e da frieza na medicina moderna é cultivar as humanidades no médico, pois o segredo do cuidado com o paciente é importar-se com o paciente.” — Adaptado de Francis Peabody (embora clínico, sua máxima é a pedra angular para a humanização cirúrgica moderna).

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