A Importância da Competência em Endoscopia Flexível na Formação e Prática do Cirurgião do Aparelho Digestivo

Introdução

A endoscopia digestiva flexível transcende a sua definição clássica de método diagnóstico. Na contemporaneidade, ela se consolida como uma extensão essencial da propedêutica e da terapêutica cirúrgica. Historicamente, é imperativo recordar que a endoscopia é um campo desbravado por cirurgiões. Grandes marcos, como a polipectomia colônica (Dr. Hiromi Shinya), a ligadura elástica de varizes (Dr. Goffredo Steigman) e a gastrostomia percutânea (Dr. Jeffrey Ponsky), foram estabelecidos por mentes cirúrgicas que vislumbravam além da incisão convencional. No entanto, observa-se um fenômeno preocupante na formação médica atual: a delegação progressiva dessa competência quase exclusivamente à gastroenterologia clínica e aos Endoscopistas. Este artigo, direcionado a estudantes, residentes e pós-graduandos, visa reafirmar a premissa de que a habilidade endoscópica não é opcional, mas intrínseca à prática do cirurgião do aparelho digestivo de excelência. Discutiremos as bases técnicas, a aplicabilidade clínica e a necessidade premente de retomar o protagonismo nesta área.

Desenvolvimento: O Cirurgião e a Habilidade Endoscópica

A Curva de Aprendizado e a Visão Cirúrgica

A competência em endoscopia flexível depende da fusão entre conhecimento cognitivo e habilidade técnica (psicomotora). O cirurgião, habituado à manipulação tecidual e à anatomia tridimensional (seja por via aberta ou laparoscópica), possui, intrinsecamente, uma coordenação olho-mão refinada. Estudos demonstram que cirurgiões tendem a apresentar uma curva de aprendizado acelerada para procedimentos endoscópicos devido à sua familiaridade com a anatomia topográfica e patológica, permitindo uma transição fluida entre a visão bidimensional da tela e a realidade espacial do órgão.

O Cenário Brasileiro e a Demografia Médica

No contexto do Brasil, um país de dimensões continentais, a distribuição de especialistas é heterogênea. Segundo dados da Demografia Médica no Brasil (CFM/USP, 2023), a concentração de gastroenterologistas clínicos | endoscopistas é significativamente menor e mais centralizada em grandes capitais do que a de cirurgiões gerais. O cirurgião geral, muitas vezes, é o único provedor de saúde especializado em regiões remotas. Portanto, capacitar o cirurgião em endoscopia não é apenas uma questão de reserva de mercado, mas uma estratégia de saúde pública para garantir o rastreamento de neoplasias (como o câncer colorretal) e o atendimento de urgências (Hemorragia Digestiva Alta) em todo o território nacional.

Do “Cirurgião de Resgate” ao “Cirurgião Estrategista”

Tradicionalmente, o cirurgião é chamado apenas quando ocorre uma complicação endoscópica, como perfuração ou sangramento incontrolável. Este paradigma do “cirurgião de resgate” deve evoluir para o de “cirurgião estrategista”. Ao dominar a endoscopia, o profissional torna-se o capitão do navio terapêutico, capaz de indicar, executar e, se necessário, converter procedimentos com total autonomia e continuidade do cuidado (Continuity of Care), otimizando desfechos e minimizando a fragmentação do tratamento.

Aplicação na Cirurgia Digestiva

A integração da endoscopia na rotina cirúrgica pode ser categorizada em três momentos cruciais:

1. Endoscopia Pré-Operatória: O Planejamento

Na cirurgia oncológica gástrica e esofágica, a endoscopia realizada pelo próprio cirurgião permite uma avaliação precisa das margens tumorais, da extensão para a cárdia ou piloro, influenciando diretamente a decisão entre uma gastrectomia total ou subtotal. Na cirurgia bariátrica, a identificação prévia de hérnias hiatais, esofagites severas ou patologias gástricas altera o algoritmo de tratamento, contraindicando, por exemplo, uma gastrectomia vertical (Sleeve) em favor de um bypass gástrico em Y de Roux.

2. Endoscopia Intraoperatória: A Segurança

O uso transoperatório é uma ferramenta de segurança inestimável. Exemplos clássicos incluem:

  • Cardiomiotomia de Heller: Confirmação da adequação da miotomia e teste de vazamento (air leak test) para exclusão de perfurações mucosas.
  • Exploração de Vias Biliares: O uso do coledocoscópio flexível permite a visualização direta e a certeza da remoção completa de cálculos, superior à colangiografia em casos complexos.
  • Localização de Lesões: Em cirurgias colorretais laparoscópicas, a tatuagem prévia pode ser imprecisa; a colonoscopia intraoperatória garante a ressecção do segmento correto.

3. Endoscopia Pós-Operatória e Manejo de Complicações

O cirurgião que realiza a endoscopia está melhor posicionado para tratar as complicações de seus próprios procedimentos ou de seus pares. O arsenal terapêutico inclui:

  • Dilatação com balão de estenoses de anastomoses (gástricas ou colorretais).
  • Tratamento de fístulas e deiscências pós-Sleeve ou Bypass com uso de próteses autoexpansíveis ou clips endoscópicos.
  • Hemostasia de linhas de sutura sangrantes.

A Era da Cirurgia Sem Cicatrizes (NOTES e Endoterapia)

Caminhamos para a era da intervenção minimamente invasiva máxima. Procedimentos como o POEM (Peroral Endoscopic Myotomy) substituem a miotomia laparoscópica; o Endoscopic Sleeve Gastroplasty (ESG) surge como alternativa à cirurgia bariátrica convencional. O cirurgião do futuro deve dominar estas técnicas para oferecer o tratamento “estado da arte” aos seus pacientes.

Pontos-Chave para o Residente e o Cirurgião Jovem

  • Necessidade de Treinamento: As sociedades cirúrgicas (como o CBC e a CBCD no Brasil) têm enfatizado a importância de currículos de residência que contemplem carga horária prática em endoscopia.
  • Visão Integral: O domínio da luz luminal (endoscopia) e da cavidade peritoneal (laparoscopia/robótica) cria um cirurgião completo.
  • Autonomia: A capacidade de diagnosticar, estadiar, tratar e resolver complicações sem depender de terceiros é o ápice da eficiência clínica.

Conclusão

A endoscopia flexível não é uma especialidade à parte, mas uma ferramenta cirúrgica, tal qual o bisturi ou a pinça laparoscópica. Para o cirurgião do aparelho digestivo, delegar essa competência é abdicar de uma parte fundamental da sua herança histórica e do seu futuro profissional. A formação médica deve encorajar a retomada deste espaço, garantindo que as novas gerações de cirurgiões sejam proficientes tanto na ciência da cirurgia quanto na arte da endoscopia. Como mentores e instituições de ensino, nosso dever é prover o acesso e a estrutura para que essa integração seja a norma, e não a exceção.

“Nenhum homem pode ser um grande cirurgião sem ser também um grande médico; e o inverso é igualmente verdadeiro no que tange ao diagnóstico e compreensão da fisiopatologia.” > — Adaptado de Theodor Billroth, pai da cirurgia gástrica moderna, refletindo a necessidade do conhecimento integral.

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