Introdução
A prevalência de colelitíase em pacientes com cirrose é significativamente maior que na população geral, atingindo quase um terço desses indivíduos. Em cerca de 80% dos casos, os cálculos são assintomáticos; no restante, manifestam-se como cólica biliar, colecistite ou icterícia obstrutiva. Apesar de a colecistectomia laparoscópica ser considerada padrão-ouro no tratamento da colelitíase sintomática, a presença de cirrose impõe desafios técnicos e riscos adicionais, como maior propensão a sangramento, infecção e insuficiência hepática pós-operatória. Em pacientes com Child-Pugh A ou B, a laparoscopia é segura quando realizada por equipes experientes e em centros com suporte especializado. Já na classe C, o risco é proibitivo, sendo preferível manejo não cirúrgico ou encaminhamento para avaliação de transplante hepático.
Avaliação Pré-Operatória e Estratificação de Risco
A decisão cirúrgica deve considerar:
- Classificação de Child-Pugh: risco de mortalidade de 10% (A), 30% (B) e até 80% (C) em cirurgias não hepáticas.
- MELD score: preditor acurado de mortalidade; acima de 25, a mortalidade em 90 dias pode chegar a 90%.
- Presença de hipertensão portal: aumenta risco de sangramento e dificulta a dissecção.
- Comorbidades associadas: insuficiência renal, cardiopatia e doença pulmonar podem agravar prognóstico.
Exames complementares recomendados incluem doppler hepático para avaliação vascular, tomografia ou ressonância contrastada para análise anatômica e rastreio de neoplasias associadas.
Indicações e Momentos da Cirurgia
- Colelitíase sintomática em Child A ou B, sem colecistite aguda grave, é indicação para colecistectomia laparoscópica.
- Colecistite aguda: pode-se optar por tratamento inicial não operatório (antibioticoterapia, drenagem percutânea ou stent transpapilar) e cirurgia eletiva tardia.
- Achado incidental de cirrose durante colecistectomia: considerar abortar procedimento e encaminhar para avaliação multidisciplinar, exceto se quadro for emergencial.
Truques e Estratégias Intraoperatórias
1. Acesso e posicionamento
- Uso preferencial da técnica aberta (Hasson) para o primeiro trocárter, evitando lesão da veia umbilical recanalizada.
- Colocação do porto de trabalho no quadrante superior esquerdo, para reduzir risco de sangramento da parede abdominal.
- Documentar grau de cirrose e hipertensão portal com fotos intraoperatórias.
2. Dissecção e controle vascular
- Expectativa de aderências neovascularizadas; dissecção com Harmonic® ou Ligasure™ reduz sangramento.
- No Calot difícil devido a colaterais, considerar colecistectomia parcial: deixar parte da parede vesicular aderida ao fígado, com cauterização da mucosa para prevenir mucocele.
- Em situações críticas, usar clipes Hem-o-lok®, Endoloop® ou sutura intracorpórea no coto cístico, preferindo ligadura segura antes da secção.
3. Estratégias alternativas
- Abordagem fundus-first pode ser útil, mas requer atenção para não lesar ducto biliar.
- Conversão para cirurgia aberta deve ser encarada como decisão de segurança, e não falha técnica.
4. Controle de sangramento
- Ter à disposição argon beam coagulator, hemostáticos tópicos e instrumentos de cirurgia aberta.
- Monitorar constantemente o campo cirúrgico; portos devem ser removidos sob visão direta.
Cuidados Pós-Operatórios
- Evitar sobrecarga hídrica para prevenir ascite e complicações respiratórias.
- Monitorar função renal e eletrólitos; hiponatremia é frequente.
- Utilizar albumina e dieta hipossódica conforme orientação hepatológica.
- Vigilância para complicações como sangramento, vazamento biliar e encefalopatia hepática.
Conclusão
A colecistectomia laparoscópica em pacientes cirróticos não é uma contraindicação absoluta, mas exige seleção criteriosa, preparo pré-operatório rigoroso e técnica cirúrgica refinada. Pacientes Child-Pugh A ou B, operados por equipes experientes em centros terciários, apresentam resultados seguros e comparáveis à população geral em termos de mortalidade. O conhecimento de truques técnicos, manejo de complicações e decisão sobre momento ideal da cirurgia são determinantes para o sucesso.
“O bom cirurgião sabe o que pode fazer; o excelente sabe o que deve fazer.” — Halsted
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