Tratamento da Colelitíase no Paciente Cirrótico

Desafios e Abordagens Cirúrgicas

A colelitíase, ou presença de cálculos na vesícula biliar, é uma condição comum em cirróticos, mas seu manejo cirúrgico apresenta desafios únicos devido às complicações inerentes à cirrose e à hipertensão portal. A cirurgia, neste contexto, exige uma abordagem criteriosa para minimizar riscos e maximizar a segurança do paciente. Este artigo destina-se a estudantes de medicina, residentes de cirurgia geral e pós-graduandos em cirurgia do aparelho digestivo, com o objetivo de fornecer uma visão abrangente sobre o tratamento da colelitíase no paciente cirrótico, destacando as melhores práticas, evidências científicas e diretrizes atuais.

Prof. Dr. Ozimo Gama
Cirrose

Introdução

A cirrose é uma condição crônica que afeta severamente a função hepática e está associada a um aumento expressivo da morbidade e mortalidade perioperatória. No Brasil, a cirrose hepática é responsável por 10 mil óbitos anuais, segundo o Ministério da Saúde, o que reforça a importância do seu manejo adequado, sobretudo em contextos cirúrgicos. A prevalência de colelitíase em pacientes cirróticos pode chegar a 30%, sendo que esses pacientes estão sujeitos a complicações graves, como a hipertensão portal e a coagulopatia, que complicam a realização de uma colecistectomia.

Portanto, ao tratar a colelitíase em pacientes com cirrose, é fundamental um planejamento cirúrgico cuidadoso e uma consideração detalhada dos riscos associados. O objetivo deste artigo é discutir as opções de tratamento para colelitíase em cirróticos, com ênfase nas abordagens cirúrgicas e estratégias para otimizar a segurança e os resultados.

Colecistectomia x Cirrose Hepática

Pacientes com cirrose hepática apresentam risco aumentado de complicações cirúrgicas, em parte devido à hipertensão portal, varizes perivesiculares, coagulopatia e distorção anatômica do fígado. A avaliação pré-operatória inclui a classificação do paciente pelo escore Child-Pugh ou MELD (Model for End-stage Liver Disease), que ajudam a prever a mortalidade pós-operatória. Um escore MELD acima de 14, por exemplo, indica um risco significativo de mortalidade após procedimentos cirúrgicos.

A colecistectomia é a principal intervenção cirúrgica para o tratamento da colelitíase, e a via laparoscópica é preferida, sempre que possível, devido aos seus benefícios em comparação com a abordagem aberta. Estudos mostram que a colecistectomia laparoscópica (LC) em pacientes cirróticos está associada a menor perda de sangue, menos infecções de ferida e internação hospitalar mais curta. No entanto, o risco de complicações, como hemorragia, é cerca de 20% maior em comparação com pacientes sem cirrose.

Em pacientes cirróticos com colecistite aguda, a situação torna-se ainda mais delicada. Nestes casos, o manejo não operatório inicial é preferível, incluindo o uso de antibióticos e drenagem percutânea da vesícula biliar (colecistostomia), especialmente para pacientes com cirrose avançada (Child-Pugh C ou MELD elevado). Caso a condição clínica do paciente melhore com o manejo não cirúrgico, uma colecistectomia eletiva pode ser planejada após seis semanas, garantindo uma melhor estabilidade hemodinâmica e recuperação hepática.

Aplicação na Cirurgia Digestiva

No contexto da cirurgia digestiva, a principal abordagem para pacientes cirróticos com colelitíase é a colecistectomia laparoscópica. A técnica laparoscópica oferece vantagens significativas em comparação com a abordagem aberta, como menor trauma cirúrgico, recuperação mais rápida e menor taxa de infecção. Contudo, devido à complexidade anatômica causada pela cirrose e presença de varizes, a dissecção deve ser realizada com extremo cuidado, evitando a manipulação excessiva da área do triângulo de Calot, onde as varizes são comuns.

Em casos de inflamação severa ou varizes pericolecísticas, a abordagem de colecistectomia subtotal pode ser preferida. Esta técnica permite remover a maior parte da vesícula, minimizando o risco de sangramento catastrófico que pode ocorrer durante a dissecção em áreas com hipertensão portal. O uso de dispositivos de energia para selar vasos sanguíneos e técnicas de hemostasia avançadas, como o uso de cola de fibrina e selantes de celulose, são fundamentais para evitar sangramentos.

Outro ponto relevante é a necessidade de otimização médica pré-operatória. Cirróticos devem ter a coagulopatia corrigida antes da cirurgia, com a administração de vitamina K e, em alguns casos, plasma fresco congelado. A função renal e cardíaca também deve ser monitorada rigorosamente, e a presença de ascite deve ser manejada com diuréticos. Em centros de referência, o uso de octreotida intravenosa para reduzir a pressão portal pode ser considerado.

Pontos-chave

  • Risco aumentado: A cirrose aumenta significativamente a mortalidade cirúrgica, com uma taxa de até 60% em pacientes com Child-Pugh C.
  • Abordagem laparoscópica: A colecistectomia laparoscópica é a abordagem preferida, com menor morbidade em comparação com a cirurgia aberta.
  • Manejo não cirúrgico inicial: Em pacientes com colecistite aguda e alto risco cirúrgico, drenagem percutânea deve ser considerada antes de uma intervenção cirúrgica definitiva.
  • Técnicas hemostáticas avançadas: O uso de dispositivos de energia e hemostáticos auxiliares é crucial para minimizar o risco de sangramento intraoperatório.
  • Avaliação pré-operatória cuidadosa: A classificação Child-Pugh e o escore MELD são essenciais para prever a mortalidade e determinar a melhor abordagem terapêutica.

Conclusões Aplicadas à Prática do Cirurgião Digestivo

O tratamento da colelitíase no paciente cirrótico exige uma abordagem individualizada e multidisciplinar. A escolha da intervenção, seja ela cirúrgica ou não, deve considerar a gravidade da doença hepática, a presença de complicações associadas e as habilidades técnicas do cirurgião. No Brasil, onde a cirrose é uma causa frequente de morbidade, é crucial que cirurgiões e equipes médicas sejam bem treinados para manejar essas situações com a maior segurança possível.

A colecistectomia laparoscópica permanece o padrão-ouro no manejo da colelitíase, mas cirurgiões devem estar preparados para adaptar suas técnicas e, quando necessário, optar por abordagens alternativas, como a colecistectomia subtotal. Além disso, a otimização pré-operatória e a correção das disfunções fisiológicas são fundamentais para reduzir complicações e melhorar os desfechos cirúrgicos.

Como afirmou Steven Strasberg, “A dissecção cuidadosa do triângulo de Calot e o uso de abordagens alternativas em cirurgias de risco são elementos essenciais para o sucesso cirúrgico em pacientes com complicações hepáticas.”

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