Um Desafio para o Cirurgião do Aparelho Digestivo
A insuficiência renal perioperatória (IRP), também conhecida como lesão renal aguda (AKI, na sigla em inglês), representa uma complicação grave associada a cirurgias de grande porte, como as do aparelho digestivo. Essa condição, caracterizada pela rápida perda da função renal, ocorre em até 40% dos pacientes cirúrgicos de alto risco, resultando em aumento de morbidade e mortalidade, além de complicações multiorgânicas. No Brasil, estima-se que cerca de 10% das internações hospitalares estejam associadas à disfunção renal, segundo dados da Sociedade Brasileira de Nefrologia. Neste artigo, direcionado a estudantes de medicina e residentes de cirurgia geral, abordaremos de forma didática os principais aspectos da insuficiência renal perioperatória, sua fisiopatologia, fatores de risco e medidas preventivas, com ênfase na aplicação prática no contexto das cirurgias do aparelho digestivo.
Introdução
A insuficiência renal perioperatória é uma das complicações mais temidas no pós-operatório de grandes cirurgias, incluindo procedimentos digestivos, sendo associada a um aumento significativo da mortalidade e ao prolongamento da internação hospitalar. Sua definição se baseia em alterações agudas na função renal, comumente medidas pelo aumento da creatinina sérica ou redução do volume urinário.
O diagnóstico precoce e a implementação de estratégias de prevenção são fundamentais para mitigar seus efeitos, especialmente em pacientes com predisposição a essa condição. Além disso, novas abordagens, como o uso de biomarcadores, têm surgido como promissoras ferramentas para diagnóstico mais rápido e preciso da insuficiência renal.
Fisiopatologia
A fisiopatologia da insuficiência renal perioperatória é complexa e multifatorial, envolvendo três principais mecanismos: hipoperfusão renal, inflamação sistêmica e resposta neuroendócrina ao estresse cirúrgico. Durante cirurgias de grande porte, como as do trato digestivo, o fluxo sanguíneo renal pode ser comprometido devido à hipotensão, hipovolemia e uso de anestésicos vasodilatadores.
A autorregulação renal tenta compensar essas alterações por meio da vasoconstrição arteriolar e ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, mantendo a perfusão glomerular. Contudo, em casos de hipoperfusão prolongada, pode ocorrer isquemia renal, culminando em necrose tubular aguda e falência renal.
O estresse cirúrgico, associado à inflamação sistêmica, também contribui para a lesão renal por meio da liberação de citocinas pró-inflamatórias, aumento do estresse oxidativo e disfunção endotelial. Assim, mesmo cirurgias que não afetam diretamente os rins podem desencadear um processo inflamatório sistêmico que compromete a função renal.
Fatores de Risco
Diversos fatores aumentam o risco de desenvolvimento de insuficiência renal perioperatória. Entre os mais relevantes estão:
- Idade avançada: Pacientes idosos têm maior risco de hipoperfusão renal devido à diminuição da função renal basal.
- Doenças crônicas pré-existentes: Hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e insuficiência cardíaca são condições que predispõem à lesão renal aguda.
- Cirurgias prolongadas ou complexas: Procedimentos com grande perda sanguínea, como as cirurgias de ressecção hepática ou pancreática, aumentam o risco de insuficiência renal.
- Uso de medicamentos nefrotóxicos: O uso de contrastes iodados, anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) e certos antibióticos no perioperatório pode precipitar a disfunção renal.
Prevenção e Aplicação na Cirurgia Digestiva
A prevenção da insuficiência renal perioperatória envolve uma abordagem multidisciplinar, com foco em medidas pré, intra e pós-operatórias. Alguns pontos-chave incluem:
- Hidratação adequada: A reposição volêmica com cristaloides balanceados é essencial para manter a perfusão renal. Estudos demonstram que a administração moderada de fluidos reduz o risco de AKI sem causar sobrecarga hídrica.
- Controle hemodinâmico rigoroso: A manutenção da pressão arterial em níveis adequados (média arterial ≥ 65 mmHg) durante o procedimento é crucial. O uso de monitorização hemodinâmica invasiva pode guiar a administração de fluidos e inotrópicos.
- Evitar o uso de nefrotóxicos: Sempre que possível, deve-se optar por alternativas menos tóxicas aos rins, como o uso controlado de contraste iodado em exames pré-operatórios e a redução de AINEs.
- Uso de biomarcadores: Embora o aumento da creatinina sérica seja o método mais comum para diagnóstico, ele apresenta atraso em relação ao início da lesão. Biomarcadores como a lipocalina associada à gelatinase de neutrófilos (NGAL) e a molécula de lesão renal-1 (KIM-1) têm demonstrado sensibilidade precoce para a detecção da AKI, especialmente em cirurgias de grande porte.
Na cirurgia digestiva, essas estratégias são ainda mais importantes, dado que procedimentos como a ressecção hepática, gastrectomia e cirurgias pancreáticas estão associados a maior risco de complicações renais devido ao potencial de sangramento, manipulação de grandes vasos e impacto sistêmico.
Pontos-Chave
- A insuficiência renal perioperatória ocorre em até 40% dos pacientes de alto risco, sendo uma complicação significativa em cirurgias de grande porte.
- Hipoperfusão, inflamação e resposta ao estresse cirúrgico são os principais mecanismos fisiopatológicos envolvidos.
- Idade avançada, comorbidades e o uso de medicamentos nefrotóxicos são fatores de risco importantes.
- A prevenção depende de uma abordagem multidisciplinar, com hidratação adequada, controle hemodinâmico e redução do uso de drogas nefrotóxicas.
- Biomarcadores emergem como ferramentas promissoras para o diagnóstico precoce da insuficiência renal.
Conclusão
A insuficiência renal perioperatória é uma complicação que todo cirurgião do aparelho digestivo deve estar preparado para prevenir e manejar. O impacto negativo dessa condição sobre a recuperação do paciente, a mortalidade e os custos hospitalares justifica a adoção de protocolos preventivos robustos. A integração de medidas de monitoramento rigoroso e intervenções precoces pode reduzir significativamente as complicações renais em cirurgias digestivas de alta complexidade.
Nas palavras de William Osler, “A medicina é uma ciência da incerteza e uma arte da probabilidade”. Aplicar esse pensamento na prática diária implica antecipar complicações, como a insuficiência renal perioperatória, e estar preparado para enfrentá-las com base na melhor evidência disponível.
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