A icterícia, uma condição caracterizada pelo amarelamento da pele e da esclera devido à hiperbilirrubinemia, é uma preocupação perioperatória crítica na cirurgia digestiva. Gerenciar a icterícia efetivamente no período perioperatório é essencial para minimizar complicações e melhorar os resultados dos pacientes. Este artigo aprofunda-se nas complexidades do manejo perioperatório da icterícia, particularmente no contexto da cirurgia digestiva, e destaca estratégias-chave para equipes cirúrgicas.
Introdução
A icterícia em pacientes cirúrgicos é frequentemente uma manifestação de doença hepática ou biliar subjacente, como icterícia obstrutiva devido a cálculos biliares ou neoplasias. No Brasil, as doenças do trato biliar são prevalentes, com cálculos biliares afetando aproximadamente 10-15% da população adulta, tornando-se uma causa comum de icterícia. O manejo da icterícia no período perioperatório é crucial, pois pode impactar significativamente o risco de complicações cirúrgicas, incluindo coagulopatia, disfunção renal e sepse.
Ciclo Enterohepático da Bile

O ciclo enterohepático da bile é um processo fisiológico fundamental que ilustra a complexa interação entre o fígado e o sistema digestivo. Este ciclo inicia-se com a produção de bile pelos hepatócitos, uma secreção crucial que contém ácidos biliares, bilirrubina, colesterol e eletrólitos. A bile, armazenada temporariamente na vesícula biliar, é liberada no duodeno em resposta à ingestão de alimentos, onde desempenha um papel vital na digestão e absorção de lipídios. Após cumprir sua função digestiva, aproximadamente 95% dos sais biliares são reabsorvidos no íleo terminal, retornando ao fígado via circulação portal, completando assim o ciclo enterohepático.
A bilirrubina, um componente-chave da bile, existe em duas formas principais: não conjugada (indireta) e conjugada (direta). A bilirrubina não conjugada, lipossolúvel, é produzida pela degradação da hemoglobina e transportada no sangue ligada à albumina. No fígado, ela é conjugada com ácido glicurônico, tornando-se hidrossolúvel e, portanto, passível de excreção biliar. Em condições normais, os níveis séricos de bilirrubina total variam entre 0,3 e 1,0 mg/dL, com a fração direta não excedendo 0,3 mg/dL. Alterações nesse equilíbrio podem resultar em icterícia, uma manifestação clínica caracterizada pela coloração amarelada da pele e mucosas.
A etiologia da icterícia é diversa e sua apresentação varia conforme a causa subjacente. Na hepatite viral, observa-se um aumento tanto da bilirrubina direta quanto da indireta, acompanhado de elevação das enzimas hepáticas, refletindo o dano hepatocelular. Em contraste, a hemólise resulta predominantemente em elevação da bilirrubina indireta, sem alterações significativas nas enzimas hepáticas, mas frequentemente associada a anemia e reticulocitose. Por outro lado, a obstrução do ducto hepático por tumor caracteriza-se por um aumento marcante da bilirrubina direta, elevação da fosfatase alcalina e GGT, além de possível dilatação das vias biliares detectável por exames de imagem. Cada um desses cenários demanda uma abordagem diagnóstica e terapêutica específica, ressaltando a importância do entendimento detalhado do metabolismo da bilirrubina e do funcionamento do sistema hepatobiliar para o manejo adequado das doenças que afetam esse sistema.
Semiologia Cirúrgica
Na avaliação pré-operatória de um paciente ictérico que será submetido a uma cirurgia hepatobiliar, a semiologia desempenha um papel essencial para identificar estigmas clínicos, sinais de hipertensão porta, parâmetros de desnutrição e sinais específicos de tumores periampulares. Uma análise minuciosa desses elementos, aliada ao uso das escalas de Child-Pugh e MELD, é fundamental para planejar a intervenção cirúrgica e prever riscos perioperatórios.
Estigmas Clínicos de Cirrose
A cirrose hepática é frequentemente associada a uma série de manifestações clínicas, conhecidas como estigmas de cirrose. Entre eles, telangiectasias ou “aranhas vasculares” são pequenas dilatações dos vasos sanguíneos visíveis na pele, geralmente no tronco e face. O eritema palmar, caracterizado por uma vermelhidão nas palmas das mãos, é outro sinal indicativo. Nos homens, é comum observar ginecomastia (aumento das mamas) e atrofia testicular (diminuição do tamanho dos testículos), frequentemente acompanhados pela perda de pelos corporais. A icterícia, amarelamento da pele e das mucosas, resulta da disfunção hepática no metabolismo da bilirrubina. Outros sinais importantes incluem a contratura de Dupuytren, que causa o espessamento e encurtamento da fáscia palmar, e as unhas de Terry, que apresentam uma coloração esbranquiçada com uma borda distal avermelhada.
- Courvoisier: Vesícula biliar palpável e icterícia – Carcinoma da cabeça do pâncreas.
- Cullen: Equimose peri-umbilical – Pancreatite hemorrágica ou gravidez ectópica.
- Grey Turner: Equimose no flanco – Pancreatite hemorrágica.
- Rovsing: Dor à extensão da articulação do quadril (devido à irritação do psoas) – Apendicite retrocecal.
- Murphy: Sensibilidade no quadrante superior direito exacerbada pela inspiração – Colecistite aguda.
- Virchow: Linfonodo palpável na fossa supraclavicular esquerda – Carcinoma esofagogástrico.
- Tríade de Charcot: Dor abdominal no quadrante superior direito, icterícia e febre com calafrios – Colangite.
- Pêntade de Reynolds: Tríade de Charcot (dor abdominal no quadrante superior direito, icterícia e febre com calafrios) acrescida de hipotensão e confusão mental – Colangite supurativa aguda.
- Sinal de Blumer: Massa palpável no fundo de saco de Douglas – Carcinomatose peritoneal.
- Sinal de Kehr: Dor referida no ombro esquerdo ao aplicar pressão no quadrante superior esquerdo – Irritação diafragmática, como em ruptura esplênica.
- Sinal de Boas: Hipersensibilidade à palpação no ângulo costovertebral direito – Colecistite aguda.
- Sinal de Trousseau: Episódios recorrentes de tromboflebite migratória – Associado a adenocarcinoma pancreático.
- Sinal de Fox: Descoloração azulada da região inguinal – Pancreatite hemorrágica.
- Sinal de Lasegue Hepático: Dor à compressão no hipocôndrio direito durante a inspiração profunda – Distensão da cápsula hepática.
- Sinal de Traube Positivo: Presença de som maciço à percussão na região de Traube (localizada entre a margem inferior esquerda do tórax e a linha axilar anterior) – Indicativo de esplenomegalia, que pode ocorrer em doenças hepatobiliares, como hipertensão portal.
Esses sinais são importantes para o diagnóstico clínico da ascite e ajudam a distinguir a presença de líquido na cavidade abdominal de outras possíveis causas de aumento do volume abdominal, como distensão gasosa ou massas tumorais:
- Abdome Globoso: O abdome assume uma forma globosa, com aumento do volume abdominal, especialmente em pacientes deitados em decúbito dorsal.
- Sinal do Piparote: Com uma das mãos posicionada em um dos lados do abdome, aplica-se um pequeno golpe com a outra mão no lado oposto. Se houver ascite, o líquido no interior da cavidade abdominal transmite o golpe, e a sensação é sentida na mão oposta.
- Macicez Móvel: Ao percutir o abdome, o som será maciço nas regiões onde o líquido se acumula. Quando o paciente muda de posição (por exemplo, deitado de lado), a área de macicez se desloca, indicando a presença de líquido livre na cavidade peritoneal.
- Sinal de Sucussão: Ao agitar suavemente o abdome do paciente, se houver líquido ascítico em grande quantidade, é possível ouvir o som de agitação do líquido (com o auxílio de um estetoscópio).
- Sinal de Oleada: Durante a palpação, a sensação de “oleada” ou “flutuação” pode ser sentida, indicando a presença de líquido sob a parede abdominal.
- Sinal de Fogueira: Na percussão do abdome, encontra-se uma área central de timpanismo (área onde o intestino flutua no líquido) cercada por áreas de macicez, que pode ser interpretada como um “fogo cercado por lenha”.
Sinais de Hipertensão Porta
A hipertensão porta, complicação comum em pacientes cirróticos, manifesta-se por uma série de sinais clínicos. A ascite, ou acúmulo de líquido na cavidade abdominal, é um dos sinais mais evidentes e frequentemente observado ao exame físico. A esplenomegalia, aumento do baço, também pode estar presente e é decorrente do aumento da pressão no sistema portal. A circulação colateral abdominal ou “cabeça de medusa” refere-se à visualização de veias dilatadas ao redor do umbigo, indicando desvio do fluxo sanguíneo devido à obstrução portal. As varizes esofágicas, detectadas pela endoscopia, e as hemorroidas são outros sinais que indicam hipertensão portal e representam riscos de complicações hemorrágicas graves.
Parâmetros Clínicos de Desnutrição
A desnutrição é um fator crítico que deve ser cuidadosamente avaliado em pacientes cirróticos, pois influencia diretamente o prognóstico cirúrgico. A perda de massa muscular, também conhecida como sarcopenia, é um dos principais indicadores de desnutrição. Associada a ela, a perda de gordura subcutânea e o edema por hipoalbuminemia (baixa albumina sérica) são sinais clínicos relevantes. Outros indicadores incluem queda de cabelos, unhas quebradiças e pele seca e descamativa. O cálculo do Índice de Massa Corporal (IMC) e a avaliação da força de preensão palmar complementam a análise nutricional, fornecendo dados objetivos para a avaliação do estado nutricional.
Sinais Semiológicos Relacionados aos Tumores Periampulares
No contexto dos tumores periampulares, a icterícia progressiva e indolor é um sinal de alerta precoce e significativo. O sinal de Courvoisier-Terrier, caracterizado pela presença de uma vesícula biliar palpável e indolor, é um achado importante que sugere obstrução biliar, frequentemente associada a neoplasias malignas. A perda de peso inexplicada é outro sintoma comum nesses pacientes, muitas vezes relacionada à natureza crônica da doença. Dor abdominal, geralmente em estágios mais avançados, prurido (devido à colestase) e febre (em casos de colangite associada) são outros sinais relevantes a serem investigados.
Escala de Child-Pugh
A escala de Child-Pugh é um sistema de pontuação utilizado para avaliar o prognóstico da cirrose hepática. Ela considera cinco parâmetros: bilirrubina total, albumina sérica, tempo de protrombina (ou INR), ascite e encefalopatia hepática. Cada parâmetro recebe uma pontuação de 1 a 3, resultando em uma classificação que varia de Child A (5-6 pontos) a Child C (10-15 pontos). Essa classificação é crucial para a avaliação da reserva funcional hepática e do risco cirúrgico.
- Child A (5-6 pontos): Pacientes com cirrose compensada, apresentando a menor morbimortalidade perioperatória. A mortalidade cirúrgica é geralmente inferior a 10%.
- Child B (7-9 pontos): Pacientes com cirrose descompensada moderada. A mortalidade perioperatória pode variar de 10% a 30%, dependendo da complexidade do procedimento cirúrgico e da presença de complicações associadas, como infecções ou sangramentos.
- Child C (10-15 pontos): Pacientes com cirrose descompensada grave. Esses pacientes têm a maior taxa de morbimortalidade perioperatória, que pode ultrapassar 50%, sendo que em muitos casos, a cirurgia só é indicada em situações de emergência ou quando não existem alternativas terapêuticas.
Escore MELD
O escore MELD (Model for End-Stage Liver Disease) é utilizado para avaliar a gravidade da doença hepática crônica, baseando-se em três parâmetros laboratoriais: bilirrubina total, creatinina sérica e INR. A pontuação varia de 6 a 40, com escores mais altos indicando uma maior gravidade da doença hepática e maior risco de mortalidade. A fórmula do MELD é complexa e leva em consideração os níveis de bilirrubina, creatinina e INR para fornecer uma avaliação precisa do estado do paciente.
- MELD < 9: Pacientes com escore MELD abaixo de 9 geralmente têm um risco relativamente baixo de morbimortalidade perioperatória.
- MELD 10-19: Pacientes com escore MELD nessa faixa apresentam um risco moderado a elevado de complicações, com uma mortalidade que pode variar de 10% a 25% dependendo do procedimento e do estado geral do paciente.
- MELD 20-29: Pacientes com MELD entre 20 e 29 têm um risco significativamente elevado de morbimortalidade perioperatória, frequentemente superior a 25%.
- MELD ≥ 30: Pacientes com MELD igual ou superior a 30 possuem um risco extremamente alto de mortalidade, que pode ultrapassar 50%, especialmente em cirurgias de grande porte.
Avaliação e Otimização Pré-operatória
O manejo perioperatório da icterícia começa com uma avaliação minuciosa do paciente. Isso inclui uma história detalhada, exame físico e testes laboratoriais direcionados para determinar a causa e a gravidade da icterícia. Testes de função hepática, incluindo bilirrubina sérica, fosfatase alcalina e transaminases, fornecem insights sobre o grau de disfunção hepática. Estudos de imagem, como ultrassonografia, tomografia computadorizada (TC) ou colangiopancreatografia por ressonância magnética (CPRM), são essenciais para identificar a causa subjacente, seja icterícia obstrutiva ou não obstrutiva. Em casos de icterícia obstrutiva, a drenagem biliar pré-operatória pode ser necessária para reduzir os níveis de bilirrubina, diminuindo assim o risco de complicações pós-operatórias. A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) é frequentemente o procedimento de escolha para drenagem biliar em pacientes com icterícia obstrutiva devido a coledocolitíase ou malignidade.
Considerações Intraoperatórias
Durante a cirurgia, o manejo da icterícia requer uma abordagem multidisciplinar. Os anestesiologistas desempenham um papel vital na otimização do manejo de fluidos e na manutenção da estabilidade hemodinâmica, já que pacientes com icterícia são propensos à hipovolemia e desequilíbrios eletrolíticos. O estado de coagulação deve ser cuidadosamente monitorado, e qualquer coagulopatia corrigida pré ou intraoperatoriamente, pois pacientes com icterícia têm um risco aumentado de sangramento. A abordagem cirúrgica deve ser meticulosamente planejada, levando em conta a causa subjacente da icterícia. Por exemplo, em casos de icterícia obstrutiva maligna, a ressecção do tumor poderá ser necessária, enquanto em condições benignas como coledocolitíase, uma colecistectomia com exploração do ducto biliar pode ser realizada. Os cirurgiões devem estar preparados para gerenciar potenciais complicações, como vazamentos biliares, sangramentos por varizes e falência hepática pós operatória que podem ter consequências sérias em pacientes ictéricos.
Cuidados Pós-operatórios
O manejo pós-operatório de pacientes ictéricos concentra-se no monitoramento de complicações e no suporte à função hepática. O monitoramento próximo das enzimas hepáticas, níveis de bilirrubina e parâmetros de coagulação é essencial. A detecção precoce de complicações, como colangite, sepse ou disfunção renal, é crítica para intervenção oportuna. O suporte nutricional também é um componente-chave dos cuidados pós-operatórios. Pacientes com icterícia frequentemente têm status nutricional comprometido devido à má absorção ou anorexia. A alimentação enteral deve ser iniciada o mais cedo possível, com nutrição parenteral reservada para pacientes que não podem tolerar alimentação enteral.
Pontos-Chave
Avaliação Pré-operatória Abrangente: Avaliação minuciosa e otimização da função hepática e do estado de coagulação são essenciais para minimizar riscos perioperatórios em pacientes ictéricos.
Abordagem Multidisciplinar: O manejo efetivo de pacientes ictéricos requer colaboração entre cirurgiões, anestesiologistas e hepatologistas para atender às necessidades complexas desses pacientes.
Abordagem Cirúrgica Personalizada: A escolha da intervenção cirúrgica deve ser guiada pela causa subjacente da icterícia, com cuidadoso manejo intraoperatório para evitar complicações.
Vigilância Pós-operatória: Monitoramento contínuo e intervenção precoce para complicações são críticos para melhorar os resultados em pacientes ictéricos.
Conclusão
O manejo perioperatório da icterícia é um desafio complexo e multifacetado na cirurgia digestiva. Uma abordagem abrangente e multidisciplinar é crucial para otimizar os resultados dos pacientes. Ao compreender a fisiopatologia da icterícia, adaptar estratégias cirúrgicas às necessidades individuais dos pacientes e fornecer cuidados pós-operatórios vigilantes, os cirurgiões podem minimizar complicações e melhorar a recuperação. No Brasil, onde as doenças do trato biliar são comuns, os princípios do manejo perioperatório efetivo da icterícia são particularmente relevantes. Aderindo a essas diretrizes, as equipes cirúrgicas podem contribuir para melhorar os resultados dos pacientes e o avanço das práticas de cirurgia digestiva.
“Operar um paciente ictérico é como pilotar um avião através de uma tempestade; você deve estar preparado para turbulência a qualquer momento.” – Moshe Schein
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